Monday, March 10

Um chá no Gurúè

No interior da Zambézia, um voluntário madeirense ensina Português na missão dos padres dehonianos. Este é o diário de um mês em África
O Guedes segura as calças com a mão direita e corre. Desce o campo junto à linha lateral e guina subitamente para o interior. Passa por um. Passa por outro. Deita a mão às calças outra vez e tira mais um adversário do caminho. Já está defronte para a baliza. Remata com o pé direito, descalço, com força e jeito.
Golo! Grande golo! O Guedes corre de braços abertos e festeja o segundo golo do Futebol Clube do Porto contra os Finalistas da EBIG, que no final da segunda parte continuam a zeros. Uma vergonha, tendo em conta que a equipa do Porto é formada por caloiros do 1.º ano, ao passo que a dos Finalistas é composta por alunos do 3.º ano.
Estou a falar do Campeonato de Futebol de Onze da EBIG - Escola Básica Industrial do Gurúè, uma cidade e distrito do interior da província da Zambézia, em Moçambique. Nos tempos coloniais, muitos madeirenses fixaram residência aqui, atraídos pela riqueza das plantações de chá, que cobriam os vales sem folga, como um vasto tapete verde e fresco.
A 25 de Junho de 1975, Moçambique tornou-se independente e com a independência vieram as nacionalizações e a guerra civil. Os colonos brancos arrumaram as malas e partiram, deixando para trás a pequena e encantadora cidade, erguida no sopé dos Montes Namúli, onde se levanta o segundo ponto mais alto do país (2419 metros) e onde nasce o rio Licungo. Só cá ficaram três ou quatro famílias de portugueses, a quem coube em sorte assistir à decadência e ao definhamento do Gurúè. Os edifícios perderam a cor e a forma, as ruas perderam o asfalto, as lojas perderam o recheio e o brilho, os jardins perderam as flores, o chá perdeu o vigor... E o povo Lomwé - a grande tribo da Zambézia - ganhou a cidade. Livres do trabalho forçado e quase esclavagista que lhes fora imposto durante décadas pelos senhores do chá, os Lomwé regressaram ao seu modo africano de viver, aos seus bairros de palhotas, à sua tranquilidade desleixada. As camisolas das equipas são fornecidas pela secção de Educação Física da EBIG. O resto do equipamento fica à consideração de cada jogador. Então, há deles que jogam com calções de qualquer tamanho e feitio, com calças, com sapatilhas, com sandálias, descalços. Outros, como foi o caso do Lenine, defesa da equipa do 2.º ano, optam por jogar só com uma sapatilha, no pé que remata, claro! O torneio decorre aos sábados no campo de futebol em terra batida do Centro Polivalente Leão Dehon, onde está integrada a Escola Básica Industrial do Gurúè. Esta Missão Católica é gerida pela Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, também conhecidos por dehonianos, e comporta áreas de formação e produção.
«É tudo uma indústria de alta envergadura!», diz com frequência, divertido e pragmático, o Pe. Ilario Verri, director do CPLD. Este italiano, de 60 anos, alto, magro e moreno, conta já com mais de duas décadas de África. Em 1992, quando o Estado moçambicano devolveu a infra-estrutura à congregação, ele assumiu os trabalhos de reabilitação, transformando-a no mais activo pólo de desenvolvimento económico e social do Gurúè.
Aqui trabalham 150 pessoas da zona. Algumas são antigos alunos da EBIG, que, como escola privada e técnico-profissional, tem um grau de exigência superior ao das escolas públicas. O aluno que reprova é automaticamente excluído. Não se admitem repetentes. Cada encarregado de educação paga 400 meticais para inscrever o miúdo ou miúda na EBIG. Não chega a 12 euros, mas para a maioria representa um grande esforço. É preciso ver que o salário mínimo de um moçambicano é 1600 meticais, numa época em que 1 euro vale 35 meticais... Ainda assim, a inscrição nas escolas públicas é mais cara. As disciplinas teóricas são ministradas no recinto da escola, ao passo que as práticas decorrem nas oficinas de Mecânica-Auto, Serralharia Mecânica, Carpintaria e Electricidade, que constituem o núcleo duro do Centro Polivalente Leão Dehon. Estas oficinas executam trabalhos para o exterior, funcionando como uma verdadeira indústria.
Existe também o sector da moagem, que trabalha das 6 da manhã às 7 da noite no período de menor movimento. Na época forte, as máquinas funcionam até depois da meia-noite... Todos os dias, excepto o domingo, são marcados por um rodopio constante de homens, mulheres e crianças com sacos de milho e mandioca à cabeça, às costas, de bicicleta.
O Polivalente comporta ainda uma papelaria-livraria e um centro de fotocópias, que tem uma procura incrível. Existe também uma sala de computadores, onde as pessoas podem consultar a Internet mediante pagamento. É um dos raros sítios com Internet ao dispor do público em todo o Gurúè. Contam-se ainda cinco "bungallows", que são alugados a todo o género de gente que passa por aqui, de turistas a religiosos, de membros de ONGs a pessoal do governo moçambicano. Embora existam algumas pensões na cidade, a Missão oferece, de longe, as melhores condições.
Desde a fundação, em 1972, então como Escola de Artes e Ofícios (por isso o bairro à volta se chama Bairro das Artes), o corpo docente da EBIG é composto por professores moçambicanos e voluntários, sobretudo portugueses e italianos. Actualmente, estão a dar aulas aqui três voluntários portugueses, dois dos quais foram encaminhados para o Gurúè através da Associação de Leigos Voluntários Dehonianos, que tem delegação na Madeira. «O Gurúè, antes, era um jardim. Agora...» Vai para 54 anos que o senhor Manuel Oliveira se instalou na cidade e de cá nunca mais saiu. Mesmo nos períodos mais difícéis da guerra civil encontrou sempre uma razão para ficar. Dona Isaura, a sua mulher, também não desiste de Moçambique. Chegou, vinda de Cernache do Bonjardim, após uma longa viagem de barco, há mais de cinco décadas. Veio para fazer companhia aos miúdos de D. Leonilde, filha do grande produtor de chá Manuel Saraiva Junqueiro. A morte deste empresário, num acidente de aviação, provocou uma grande onda de tristeza. Em sua homenagem, a partir de Outubro de 1959, a Vila do Gurúè passou a designar-se Vila Junqueiro.
A independência trouxe de volta o antigo nome.
Não há consenso sobre a origem da palavra Gurúè. Há quem diga que era o nome de um chefe tribal, quando os portugueses cá chegaram. Outros afiançam que Gurúè significa "porco do mato" na língua Lomwé. Seja como for, o certo é que a localidade nasceu e cresceu para a cultura do chá, sobretudo a partir dos anos 30 do século XX.
Na década de 40, viviam no Gurúè 300 portugueses, «muito bem instalados em casas com jardins», conforme os relatos da época. Apesar deste conforto, a cidadezinha estava profundamente marcada pelo isolamento e a distância em relação às grandes cidades da costa, como Quelimane, a capital da Zambézia. Os produtores de chá, contudo, financiavam uma pequena aeronave que fazia viagens regulares.
«Muitas vezes pedi ao senhor Faria, que era o piloto do avião, para me levar a Nampula ou a Quelimane, para ir ao médico ou para levar os meus filhos ao médico», conta-me a D. Isaura, sentada no sofá, defronte para o marido. Pela janela da varanda, avistam-se os prédios encardidos do outro lado da rua - a principal da cidade. «Se visse o que era esta rua naquele tempo!», desabafa, e sente-se que o aperto do coração lhe passa para a voz. «Era asfaltada, os canteiros sempre cheios de flores, a lagoa da rotunda sempre bem arranjada, os prédios limpos...».
O Gurúè ainda hoje encanta qualquer visitante, mas naquele tempo encantava mais. As senhoras tratavam das flores com muito esmero e todos os anos era atribuído um prémio ao melhor jardim. «Se eu tinha o jardim bonito, a vizinha queria logo ter o dela ainda mais bonito», recorda D. Isaura. Já o senhor Oliveira prefere orientar o pensamento para o velho dinamismo económico do Gurúè. Pelos dedos, conta doze produtores de chá, entre os quais os grandes Chá Moçambique, Companhia da Zambézia, Chá Gurúè e Plantações Manuel Saraiva Junqueiro. A produção era praticamente toda exportada para o Reino Unido, EUA e Canadá.
«Em 1957 - diz o senhor Oliveira - começou o grande desenvolvimento do Gurúè.» Por essa altura, construíram o cinema, agora encerrado e combalido, e o pequeno avião da TAZ (Transportes Aéreos da Zambézia) não parava quieto no aeródromo, agora um baldio dos arredores.
D. Isaura interfere: «Antes da independência, antes da guerra, isto era um sonho, um luxo. O Gurúè era pequenino, não era nada, mas era um sonho! Foi a independência que estragou tudo.» Mas é na Praça da Independência, entre ruas de terra batida e completamente esburacadas, em frente do edifício do Governo do Distrito, que o povo e as autoridades assinalam as grandes datas, como foram já o Dia dos Heróis Moçambicanos (3 de Fevereiro) e o Dia da Cidade (24 de Fevereiro). Uma particularidade: quando as efemérides coincidem com o domingo - como foram estes dois casos - o feriado transita para segunda-feira. Coisas do estilo africano. Isaura e Manuel Oliveira casaram-se em 1962 na capela de Santo António, à entrada da cidade, mesmo à beira da estrada para Quelimane. Nasceram três filhos, dois rapazes e uma rapariga, e a vida correu tranquila entre chazeiros, estradas emolduradas por hortênsias e jacarandás, idas à missa aos domingos, convívios em casas de amigos e tardes calmas no Clube do Gurúè, de que o senhor Oliveira foi um dos sócios fundadores. Agora, faz-lhe tanta pena ver o abandono do edifício e o nome na fachada mudado para Casa da Cultura.
Os negócios iam bem. O senhor Oliveira estava a construir um bloco de apartamentos no centro da cidade e possuía uma grande manada de gado quando Moçambique proclamou a independência. Perdeu quase tudo. Toda a gente perdeu quase tudo. A onda das nacionalizações apanhou também de forma fatal as companhias de chá, que passaram a designar-se por Unidades de Produção (embora a produção tenha baixado substancialmente). Ainda hoje são conhecidas por UP. Existem seis e um circuito por aí conduz-nos a sítios espantosos, pois o Gurúè está totalmente rodeado por montanhas verdes e densa vegetação tropical. Às vezes, olhando de relance, parece que estamos na Madeira. Só cá falta o mar...
«A guerra estragou tudo!», lamenta D. Isaura, dizendo que por essa altura só teve tempo de ir a Portugal deixar os filhos - o mais velho tinha 12 anos - e logo correr para junto do marido. «Ele tinha um sono muito pesado. Eu queria estar com ele, pois podiam entrar em casa num instante e matá-lo sem ele dar por nada.» Nessa altura, muitas vezes tiveram de fugir para os montes ao som de tiros...
Mas não desistiram. Ficaram no Gurúè.
Depois da guerra, o prédio do centro da cidade foi devolvido à família Oliveira, que tratou de reabilitá-lo. «Muito chorei», confessa D. Isaura. «Estava sempre a dizer ao meu marido: "Não morremos da guerra, mas vamos morrer de uma doença neste prédio!" Você não imagina a sujidade que aqui havia, não imagina...» Mas não morreram e continuam em Moçambique. Agora, contam com a companhia de um dos filhos, que veio para ajudar nos negócios. Vivem numa mistura de amor e desilusão pelo país, pela Zambézia e pela pequena cidade dos Montes Namúli...
Chega a hora do pôr-do-sol. D. Isaura, a quem os 75 anos não roubaram nada à capacidade de comunicar, conduz-me à varanda das traseiras. «Veja isto!», e aponta com os olhos para a paisagem de fundo. «Todos os anos, os voluntários das Artes vêm aqui tirar fotografias. É um espectáculo, não é?!». A 1.ª jornada do campeonato da EBIG chega ao fim. Quatro equipas disputam o título: o Porto e o Barcelona (ambas do 1.º ano, porque a turma é maior), os Semifinalistas (turma do 2.º ano) e os Finalistas (turma do 3.º ano). Em todas as equipas alinham também professores. Neste primeiro andamento, jogaram Porto (2)-Finalistas (1) e Barcelona (2)-Semifinalistas (3). É a hora do regresso a casa e o pessoal dispersa, a caminho dos vários bairros que compõem a cidade do Gurúè. Entre outros, contam-se o Bairro das Artes e Ofícios, onde fica o Centro Polivalente, o Bairro Moneia, o Bairro da Barragem, o Bairro da Escola Secundária, o Bairro Serra, o Bairro 1.º de Maio, o Bairro Comunal, o Bairro Novo e o Bairro Cimento. Este constitui o centro da cidade e engloba também as antigas vivendas coloniais, agora ocupadas pela elite local. É também um dos poucos que dispõe de iluminação pública. Os outros, mergulham à noite numa profunda escuridão e até parece impossível que abriguem uma população de 40 mil pessoas.
As casas, na maioria, são feitas de tijolos de barro cozido, com cobertura de zinco ou capim, e espalham-se pelo meio das machambas (poios) de milho e cana-de-açúcar e do denso arvoredo, onde são comuns as abacateiras, as goiabeiras, as anoneiras. Ainda que as casas não estejam umas em cima das outras, os caminhos de terra vermelha à volta delas tornam-se verdadeiros labirintos. Para o visitante casual, o melhor é utilizar as estradas principais, sendo que só uma está asfaltada - a que conduz a Quelimane, que fica a 450 quilómetros. O asfalto, porém, termina exactamente à entrada da cidade, dando lugar à tradicional terra batida, aos buracos e aos caboucos, à lama e à poeira, por onde circulam poucos carros, muitas bicicletas e sobretudo gente e mais gente a pé.
Entre os mercados ao ar livre e os bares esgrouviados, entre as lojas encardidas e as casas desajeitadas, entre as ruas de terra da cidade e os caminhos agrestes da montanha, no Gurúè sente-se o autêntico pulsar de África, o jeito puro do terceiro mundo e a intensidade das grandes distâncias... Sobretudo assim, quando somos uma estranha mancha branca entre o calor da pele negra. O fascínio é único. Os perigos, esses, são os mesmos de todo o mundo.

Duarte Caires - DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA

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